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domingo, 15 de setembro de 2013

Águas de abril - Zenóbio Oliveira

O rio foi engolindo seu próprio leito numa torrente autofágica, empanzinando, até se derramar pelas beiradas e alagar, às rápidas, toda a várzea das Aguilhadas, cobrindo plantações e casas. O povo atordoado pelejava para salvar o patrimônio de uma vida. Um corria desesperado com o que podia carregar nos braços, outro soltava dos chiqueiros os bodes amedrontados. Vários se desdobravam com os objetos mais pesados. Um trabalho a mil mãos, de irmãos, comungando o mesmo desespero.
Alberto procurava um lugar no seco para depositar os instrumentos da lida. Aparou o balancim da capinadeira que boiava carregado pela correnteza em seu terreiro. Antonio Oliveira, amuado, praguejava contra a marola teimosa, que lapeava o batente da porta, querendo entrar à fina força. Chico Carlos tentava achar, aos mergulhos, o pilão feito do tronco do tamarindeiro que outra enchente tinha derrubado.
Era 11 de abril de 1985... Um dia de caos, um dia de cão.
O corre-corre da enxurrada passou, mas o aperreio continuou pari passu com os dias seguintes.
A casa de Sotero, uma das poucas do lugar que não foi alagada, servia de abrigo para mulheres e crianças. Os homens improvisavam barracas de lona em meio ao matagal da serra. Juremas, catingueiras e quixabeiras viraram alojamento, compensando a escassez de lonas. Chuvas intermitentes durante o dia e constantes à noite, que nem dor de dente, que só parava de manhã. Os mosquitos borrachudos se encarregavam de agravar a tortura naquele acampamento de flagelação.
As notícias de chuva nas cabeceiras do rio eram desanimadoras, embora tenham durado somente o tempo em que agüentaram as pilhas Ray-O-vac do radinho Philco Transglobe que não saía do colo de Xoxó.
17 de abril... Nova enxurrada.
Dessa vez com o aditivo das águas do açude do Cote, que não agüentou o pancão e espatifou-se rio abaixo.
O pior estava por vir. Com volume maior, a água cobriu literalmente as casas que, de molho, começaram a cair. Uma por uma. O estrondo da queda ribombava nos ouvidos e se misturava ao choro das pessoas numa dissonância medonha.
Pranto, chororô.
O resmungado plangente das crianças reclamando comida completava o acorde daqueles lamentos indefinidos.
É a ladainha da fome, dizia Lourival.
Isolados, esquecidos, longe de tudo, entregues a própria sorte.
A provisão de boca era os Cangatis pescados nos mata-setes e as piabas que se abestalhavam na única tarrafa que a correnteza não tinha carregado. Não havia outra mistura. Nem pra vender, nem pra emprestar. O rio que deu o peixe em fartura tinha inundado a lavoura do feijão que brotava e carregado os baús com a farinha.
Tempos ruins. Tempos ruins.
Via a angústia se derramando nos olhos de minha mãe, em carne, osso e maldade como dizem os meninos do “Chuva de bala”, lá de Mossoró O sofrimento se materializava nos rostos de cada um. Era visível, palpável, assustador.
A chuva que tanto fez falta nos cinco anos anteriores, despejou-se impiedosa, num dilúvio descomunal, sem arca, matando bichos, destruindo lavouras, derrubando casas, subtraindo bens.
Foi o abril mais perverso da história de nossas vidas.

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